domingo, 21 de abril de 2013

                                                                      XVI


Quase sem dinheiro e  sem sítio para onde ir, sentei-me, naquele final de tarde, num banco  de uma pequena e sossegada  praça de Farvira. Enquanto fumava, tentava afastar ainda mais os últimos  laços. Rita, os miúdos, a minha infância na minha cidade, tudo engolia um cliché marcial: o da irrealidade. Trabalhos  de Procusto, porque sabia bem  o que era irreal: aquele cigarro.
Comecei a reparar  na mudança  de energia quando um homem escorregou. Levantou-se e desatou a correr ( provavelmente já viria a correr, pelo que apenas retomou  a disposição) .  Notei uma jolda apressada que entrou num café a dois passos do meu poiso.  Curioso, mantive-me quieto no meu panóptico e continuei a registar. Passado um bocado,  ouviram-se sirenes ao longe. Das ruas  vizinhas à praça afluiram grupos e pessoas isoladas. Alguns  paravam  a conversar, outros continuavam, excitados. Resolvi sair do meu  posto de observação e dirigi-me ao café .
Passei pelo grupo que conversava à entrada e não consegui entender bem a origem do  tumulto, mas qualquer coisa acontecera  em Marília. Já dentro do café,  a algazarra era enorme e isso surpreendeu-me.  Não estava habituado a uma excitação assim sem ser por causa de futebol. Na televisão apareceu  o comissário nacional  do Interior, na altura, Ante  Sylba.  O comissariado tinha sido  cercado  por populares que, não se sabe como, acabaram por entrar no edifício  e proclamaram a  independência nacional e a demissão de todos os comissários presentes. O do Interior estava no gabinete central da CADE,  por isso escapou. Fazia agora uma alocução ao país. Lamentava  a situação e prometia ao regresso à normalidade, que seria inevitável. O sítio electrónico do Comissariado Nacional, segundo me disse uma mulher de cabelos nervosos ao meu lado, que consultava o seu smartphone, também publicou um comunicado a garantir o retorno  à normalidade. Não dizia era quando nem como.






A normalidade  ganhara aura  de mito. As pessoas tinham sido forçadas a tempos anormais, a uma sucessão de tempos anormais. Primeiro, a partir de 2012, uma crise económica acentuadíssima. Depois, entre 2013 e 2016, assistiram, e participaram, na derrocada de vários suportes da sociedade como sempre a tinham conhecido. A dissolução dos partidos, a emigração em massa de gente que em condições normais nunca emigraria, o desligar dos laços com a Europa rica ou, pelo menos, remediada. Finalmente, nos primeiros meses de 2017, a vida sem governo, sem parlamento, sem chefe do Estado, sem Estado. Neste caldo, a chegada da CADE, e  a intervenção directa do Governo Central Europeu,  a todos os títulos anormal, aparecia como a semente do regresso à …normalidade.
A lógica dos acontecimentos em Marília  pressupunha o envio de forças da DINATE para o edifício do Comissariado e era isso que aguardávamos. Estranhamente, não havia notícia da demonstração de força.  O que era estranho era a nossa amnésia. O ordenamento legal do país, imposto pela própria CADE,  interditava  a intervenção da DINATE em manifestações de carácter político, sempre que estas tivessem como alvo instituições exclusivamente nacionais e não  pusessem em risco pessoas ou bens. Um homem com meia careca e uma cerveja acabada  na mão  pareceu ler-me o pensamento.
      -  Pois é. Os gajos não podem fazer nada  a menos que os comissários apresentem queixa ou os chamem.
Parecia de malucos. A invasão do Comissariado fora  pacífica, sem armas, e os comissários  sequestrados  não puderam, ou não quiseram, pedir socorro. Ante Sylba  não estava lá, por isso, legalemente, não podia recorrer à DINATE. Talvez não fosse de malucos, talvez  fosse genial.
Em rodapé, na emissão de um dos canais, correu a legenda: A DINATE já está a caminho da  rua  Helmut Khol. Pensei que era bluff. O Governo Central Europeu não permitira um banho de sangue,  ainda por cima  sem legitimidade de actuação. As colónias tinham de ser respeitadas  nos seus  resquícios de soberania envergonhada.
Durante o resto da tarde, e pela noite dentro, viveu-se  um clima de ansiedade  e expectativa. Os media e a internet  foram dando  notícias de um jogo de surdos. Os jipes da DINATE estabeleceram um cordão de segurança à volta do edifício da rua Helmut Kohl, mas os populares dentro do Comissariado não esmoreciam.  A certa altura, já toda  a gente no café  se comportava como  amigos ou, pelo menos, conhecidos. 
Numa mesa livre, sentei-me a debicar amendoins e bebi uma  cerveja com um casal de engenheiros reformados. Pensei que ia ouvir a milésima  versão da queda do nível de vida, da pensão reduzida  a metade, do racionamento de coisas antes supérfluas. Enganei-me. A mulher, com os olhos agarrados à televisão e as mão debaixo da mesa , discursava baixinho com se tivesse um duende no colo
-       Oxalá não se rendam. Seriam um exemplo e nós  não sabemos o que isso é.

O marido  concordava. Se é para sermos pobres e miseráveis, que  o sejamos  por nós.  Entendi  dizer-lhe que sem a CADE seríamos  pior do que pobres, porque , por exemplo, eles os dois nem as cortadas  reformas  manteriam. Foi então que  a mulher , já não me recordo do nome, Ana, ou Anabela, ou Bela, me perguntou em que país  é que eu vivia.
       -  Se a alternativa entre ser uma  colónia pobre ou uma nação miserável não se coloca, como raio lê você o século  vinte ? Em que somos diferentes  da Indochina ou da Rodésia?







Não a contrariei, porque seria cruel. A diferença para as nações emergentes, de que ela continuou a dar-me exemplos, era  que nós já experimentáramos  o conforto e o desenvolvimento. Pior, fomos aculturados por mais do que um império, habituámo-nos a um sentimento de pertença a uma Europa rica. A teoria de que não havia nada  a perder não funcionava, porque havia  a memória anterior à perda e essa memória , a dos bons tempos, funcionava como uma cola que nos agarrava ao passado. O medo de romper  era essa cola. O meu pensamento voltou a ser lido e ela voltou à carga como um dentista tenaz.
      -  É verdade que ainda temos alguma coisa e também é verdade que nos lembramos de ter muita  coisa. Mas você pensa que um povo é uma caixa registadora? Que não tem orgulho?

Pensava, mas não lho disse. A ausência de orgulho  não deve ser sublinhada.  Fui à rua fumar um cigarro, afastando-me um pedaço da gente que se apinhava  à entrada. Quando regressava, estava um  rapaz a chamar as pessoas. Havia um autocarro  para Marília, íamos para uma manifestação. 
Recuei, já fora tempo de manifestações, muitas manifestações. Não deram em nada, pura energia desperdiçada. Uma mulher  percebeu a minha recusa e tive de me explicar.
-       Não adianta nada...
A mulher, gorducha, enfiada num fato de treino, desatou aos berros.
    -       Este é mordomo!Não quer ir  Olhem este! Está a
espiar-nos o filho da puta! Estás a espiar-nos, cabrão?

Não tive tempo de reagir.  Quando pensei nisso já me tinham agarrado. Lembro-me de ver um tipo à minha frente e de levar uma cabeçada, lembro-me da vozeada  e do cenário demosténico no meu campo de visão já bem turvo.  Cai de joelhos e ainda me ferraram dois ou três pontapés nas costelas.  Entrei numa espécie de amok e e acordei  sentado  no passeio,  encostado a uma parede e com sangue na boca. O nariz doía-me  como se mo estivessem a apertar com um alicate. Depois  senti  uma frescura fabulosa causada pela água que alguém  meu lado me despejava sobre  a cabeça.
-       Não o posso largar que você mete-se logo em sarilhos.
Laura não era uma visão porque eu via tudo desfocado. Ajudou-me  a levantar e caminhou comigo. Na direcção oposta  à que tomámos  ainda ouvi vozes  exaltadas mas mais fracas.
-       Não há autocarro nenhum. Alguns  enfardelaram a trouxa  e vão meter-se nos carros para Marília. Venha comigo.
Levou-me  para um  um carro. Sentou-me no lugar do pendura e arrancámos. Parou numa estação de serviço, comprou  álcool e pensos e tratou-me do nariz.
-       Paramos no caminho para beber um café. Não é conveniente ir ao hospital.




Já era de noite e  adormeci pelo caminho. Quando acordei rodávamos  em plena autoestrada. Um luxo ao qual não estava habituado. Naquele momento era-me indiferente. Parámos numa área de serviço e engoli dois cafés oferecidos por Laura. Fui actualizado sobre a rua Helmut Kohl. A DINATE cercara a sede do  Comissariado e os activistas, ou lá o que eram,  ficaram lá dentro. As comunicações via telemóvel não acrescentavam muito. Era de novo um impasse. Laura não me explicou como me encontrou naquela praça em Farvira.
-Andamos  por todo o lado, sabemos tudo. Você agora é  dos nossos.

Grogue como me sentia , não argumentei. À medida que engolíamos os   quilómetros, de olhos fechados, para evitar conversas, fui pensando. Já era  a segunda vez que  Laura e os amigos me encontravam e eu não era assim tão estúpido. Pensei ser  impossível um grupo de lunáticos estar tão bem informado. Por outro lado, esse interesse  em alguém como eu ultrapassava-me. Claro que  tinham  arregimentado mais gente. Em Kara, durante  a conversa mole, Piter disse-me que  havia outros sectores. Uma espécie de células,  para usar uma linguagem do passado. Fosse como fosse, eu não valia nada, era incompreensível  tamanho desvelo.
Devíamos estar  a pouco mais de dez quilometros de Marília quando liguei o rádio do carro. Passados uns minutos, o boletim informativo abriu com a reportagem sobre a rua Kohl, mas logo a seguir as palavras paralisaram-me. Tinham sido detidos elementos terroristas, em Farvira, que planeavam um atentado contra uma alta figura da administração da CADE. A operação fora bem sucedida  graças a elementos infiltrados. Diversa documentação, computadores pessoais  e telemóveis  apreendidos permitiriam mais detenções num futuro breve. Existiria uma rede  que se preparava para executar  um número indeterminado de  de pessoas ligados à CADE.
Olhei para Laura que permanecia  impassível, com as mãos no volante, sem um sinal de tensão no perfil que eu podia  examinar.
-       Abra o porta-luvas. Tem uma pasta vermelha. É para si.

quarta-feira, 10 de abril de 2013


                                                     XV



Já tinha  a minha dose. Foram dias de fracasso total. Telefonei  a Laura, que  não atendeu.  Não valia a pena deixar outra  mensagem porque  nada tinha para dizer. Sentia-me estúpido e desorientado.
Estava como  o coelho na couve  e nem dei pela aproximação dos dois  tipos. Vestidos informalmente, de aspecto normalíssimo, discretos e educados, identificaram-se como sendo da SEPARA, a  Secção de Prevenção das Actividades Recessivas, um departamento da  DINATE. As actividades recessivas eram aquelas que impediam o país de ficar menos pobre do que já estava. Originalmente pensada para problemas comezinhos, como contrabando, contrafacção e afins, depressa evoluiu para a vigilância de comportamentos. O que era um comportamento recessivo? Por exemplo, conspirar para matar um burocrata europeu.Breton não faria melhor.
 Sr. Gose, está detido para averiguações ao abrigo da lei ROSETE , faça o favor de nos acompanhar. Nem mais nem menos.  A lei ROSETE ( Reorganização  da Segurança do Território) previa a detenção , sem ordem judicial, por um período de quarenta e oito horas, de qualquer suspeito de atentar contra a segurança do país. Peguntaram-me se trazia alguma arma, o que me fez sorrir de tal forma a revista foi sucinta.
Acompanhei-os  a pé durante uns metros e entrámos num carro sem  identificação.  Entalaram-me entre  eles no banco de trás  e o motorista arrancou. Sabia  que ia para o posto de atendimento , um eufemismo para a esquadra da DINATE local. Cumpridas as formalidades , escoltaram-me até um pequena sala , muito confortável, com uma mesa de reuniões  e três sofás individuais. Sentamo-nos nestes e um dos inspectores  quis saber o que fazia eu  no hotel Marisol, com quem me tinha encontrado e que  instruções recebera.  Respondi que tinha ido com um amigo conhecer umas pessoas.
-       O senhor não está a entender.
Não estava , não. Levantaram-se e deixaram-me sozinho  mais de meia hora. Regressaram e  um deles pousou o tablet nos joelhos  e começou a ler. Todos os nomes.  O da Rita e  dos meus filhos, o que faziam, onde estavam etc. Para além do facto de terem feito o trabalho de casa, não pressupus mais nada. Mantive-me calado.
-       O senhor Gose sabe que naquele hotel está alojado um indíviduo que já foi condeado pelo crime de atentado contra  a segurança nacional?
O Zapa a atentar conta a segurança nacional?  Sorri de novo. Não, não sabia, nunca o tinha visto antes. Informaram-me  que sabiam quem me tinha levado lá e também sabiam  os nomes dos garotos  do charro. Quiseram saber onde estavam esses também terríveis suspeitos. Não sabia. O mais velho dos inspectores, que até aí não tinha aberto a boca, começou a falar. Tinha  um sotaque  indeterminado, talvez alemão, ou holandês.
-  Temos a zona em  vigilânt porque chegou ontem a um resort  daqui um alto person do vosso governo.



Vosso governo. Uma dupla mentira, porque nem era nosso nem era governo.  Já estava habituado, todo estávamos já habituados a este dialecto.
-       As suas explicações são insuficientes. O seu amigo Carles Pau desapareceu, mas vamos encontar ele. O senhor esteve com o seu amigo Michel Cato-Zapa no hotel  quarto.








O linguajar siginificava apenas que não tinham nada contra mim. Não era proibido visitar pessoas, mesmo que fossem ex-condenados. O outro polícia, o mais novo, com sobrancelhas negras carregadas e uma espécie de msoca no queixo, avançou noutra direcção.
       - Por que motivo o senhor Gose se demitiu das suas funções em Setraga? Por que motivo a sua mulher  não sabia de si? Por que motivo veio para Farvira com Carles Pau?
A coisa passou para outro plano, um plano bastante  desconfortável, porque também eu queria saber as respostas a essas perguntas. É difícil mentir quando não se sabe  a verdade.
Fiquei detido para averiguações apenas vinte  e quatro horas.  Não averiguaram nada, porque não havia nada para averiguar. No dia 28, à tardinha, entregaram-me a  mochila, com tudo revolvido, as chaves de casa, que não sabia  por que raio as tinha  trazido   e o  telemóvel,  de certeza    violado com método.
O funcionário levou-me para outra sala, mais pequena, só com uma mesa  e duas cadeiras. Mandou-me sentar e esperar. O telemóvel  estava sem bateria. Deve ter passado uma hora, ou quase. Por fim entrou uma mulher, ruiva, cinquentona. Disse chamar-se Freda, era austríaca e estavava colocada na DINATE. Falava com sotaque,  mas falava bem.
-       A partir de agora o senhor Gose está impedido  de exercer  qualquer função  que dependa do GASO. Não poderá dar aulas nem trabalhar em nenhuma estrutura pública. Abrimos um inquérito. Ao abrigo da lei ROSETE,  o senhor é considerado supeito de ter atentado contra a segurança do território.

Quis saber de que me acusavam: associação criminosa. Era rídiculo, porque Zapa  já cumprira  pena e, tanto quanto eu sabia, não estava acusado de nada.
 A lei ROSETE era uma forma expedita de estrangular a revolta, digamos, mais intelectualizada. Os vândalos e a canalha simples, que partiam  montras ou assaltavam bancos, contiuavam a ser julgados  pelos tribunais comuns. Os opositores  mais sofisticados, e alguns terroristas,  passavam pelo crivo da SEPARA e de um tribunal especial.
Estas medidas já eram discutidas antes da chegada da CADE, nos anos de anarquia política e autogestão. É verdade que não chegou a haver caos nem  guerra nas ruas, mas isso não impediu as pessoas de julgar que tal era possível. Assim, em 2017, as medidas extraordinárias  foram aceites como inevitáveis . O facto de  ter sido a CADE a colocá-las em prática permitiu o habitual abanar de cauda. Alguns  protestos tímidos, muita prosápia  nos jornais, mas nenhuma oposição real. O velho argumento do " não há alternativa" funcionou com uma metralhadora bem oleada: "Se  houver desordem, os mínimos essenciais não são garantidos e depois como é?". Ou seja, os mordomos e as marionetas mediáticas asseguravam preferir uma colónia bem administrada à anarquia. Os intelectuais, os artistas e os editorialistas oficiosos, que nos tempos da autonomia, em que  fazíamos as nossas leis e elegíamos os nossos deputados,  refilavam com qualquer  prepotência judicial, entregavam-se por esta altura a um sonambulismo conveniente.
Percebi que não podia fazer nada. Freda foi  simpática, ofereceu-me um regrigerante e umas bolachas e despediu-se.
- Nós só queremos o melhor para si e para este país.



















terça-feira, 26 de março de 2013

                                                                           XIV




O hippie velho estendeu-me  a mão, seca e suja, e ofereceu-me uma cadeira. Os garotos saíram da cama sem uma palavra, apanharam um saco, ou coisa do género, do chão e abandonaram o quarto com Carlo. 
O velho tinha o cabelo branco penteado para trás e usava uma túnica florida gasta que mal cobria umas  sandálias arrebentadas.  Carlo não teve tempo  de fazer queixa de mim, por isso o homem entendeu  apresentar-se. Nunca saberei por que motivo, Zapa, era esse o seu nome, confidenciou-me detalhes  intímos da sua infância. Fiquei  com  a impressão de que quis justificar, de alguma forma, o uso da violência contra os poderosos. Escolheu um caminho  enleante. Resumido, o que me recordo, talvez  já acrescentado por mim, porque se o passado é um país estrangeiro, a memória é uma amiga infiel:


A mãe abandonou-o, tinha ele  quatro anos, para ir com um bancário reformado ( soube depois), o pai deixou de  espancá-lo logo a seguir, porque emigrou para a Suiça .
Ainda viveu com o tio paterno, um homem   bom, casado com uma mulher  má como as cobras e dois primos: um quase da sua idade, outro ainda bebé.  Durou pouco a experiência, porque o ordenado do tio, escriturário, era pequeno e as dívidas  muitas.  Lembra-se de dormir  num anexo minúsculo da cozinha, num colchão fino sobre o cimento.
Aos cinco anos,   passou para o outro lado da cidade, para casa de uma tia , a bem dizer, tia-avó, religiosa e solteirona, professora primária reformada. Quando  o tio o levou, num domingo - nunca mais esqueceu - , não entrou logo. Ficou no carro a olhar para a porta. Viu uma mulher de preto, magra, com toutiço e um nariz de bruxa. A mulher mandou entrar  o tio e ficou para trás a  olhar  para ele com olhos de águia. Lembra-se de ter pensado que o tio se devia ter enganado na porta. Era  o primeiro dia de Dezembro do ano de 1964.
Instalou-se como uma infecção. A tia destinou-lhe um dos dois quartos da casa, uma casa igual ás outras na correnteza da rua.
 Era um bairro   construído  há uma dezena de anos para alojar funcionários públicos, sobretudo professores.
Chegava da escola, fazia os deveres e ficava a atirar uma bola à parede do pequeno  pátio húmido até a tia o chamar para jantar.  Uma sopa de couve e feijão, sempre,  talvez um bife pregado, as mais das vezes massa com frango ou fiambre. Nem um beijo. 
Não podia receber amigos em casa, televisão só aos sábados ou quando a tia adormecia  na cadeira .
Quando começou a ficar homenzinho, a tia entendeu por bem arranjar-lhe um espécie de pai auxiliar. Começou a ir todos os sábados almoçar a casa do sacristão, o senhor Eduardo. Era um homem  magro, amarelo e com cara de coelho.  Ao fim de algum tempo, talvez a partir da quarta ou quinta vez, o senhor Eduardo começou a recebe-lo com um abraço muito forte. Depois o abraço passou a ser mais suave e o senhor Eduardo puxava-o e esfregava  as suas partes baixas nas  dele.
 Ao cabo de dois ou três meses, a cerimónia  que antecedia o almoço era sempre a mesma: sentavam-se num canapé de palhinha,  encostado  a uma parede da sala de jantar, o senhor Eduardo  tirava o zequinha do Zapa , como    chamava ao pénis,   para fora, massajava-o  e chupava-o. Nessa altura teria Zapa  uns onze anos.
Uma vez disse à tia que não queria voltar a casa do sacristão. A tia ferrou-lhe duas lambadas. Soube então que um dia devolveria, com juros, a estaladas. No entretanto, aceitou a explicação que  a tia, a seguir ao método educativo, lhe deu: o senhor Eduardo estava  ajudá-los e não havia nenhuma razão para recusar.
Os dias não existiam. A escola era aborrecida porque não lhe  ensinava o que precisava de saber. Tinha agora treze anos e não sabia por que  se  lembrava bem do   pai, não sabia por que  a mãe fora embora, não sabia se gostava do que o senhor Eduardo lhe fazia. Sabia, isso era certo, que os miúdos da escola o achavam diferente. Certa vez , umas garotas estavam a contar piadas porcas e metu-se  na conversa. Declarou que nenhum pénis cabe por inteiro na boca de uma pessoa e que é necessário  fazer como nos gelados. As garotas ficaram especadas a olhar para ele e desde então nunca mais  o deixaram aproximar. Os rapazes desprezavam-no. Vestia-se com roupa de há cinquenta anos, tinha um buço horrível, o cabelo cortado à tijela, era gordo e ria a despropósito.
Num belo dia chegou a casa e viu a tia sentada na sala acompanhada de uma mulher que reconheceu mal. Era a irmã do sacristão, que tinha vindo a dar a triste notícia da morte do  senhor Eduardo. Parece que de ataque cardíaco fulminante. Sentou-se em frente delas ainda com os cadernos sobre os joelhos e voltou  a reconhecer aquela sensação estranha de não sentir nada. A mulher era amiga da irmã do sacristão. Toda a gente estava espantada, porque o senhor Eduardo era um homem muito pacato, nada a dado  a comoções, levava uma vida  tão sossegada.
Pediu licença para ir para o quarto  fazer os trabalhos de casa. Há anos que conhecia o senhor Eduardo, o caminho para casa do senhor Eduardo, as mãos do senhor Eduardo, a boca do senhor Eduardo, o cheiro do senhor Eduardo. Durante esse  tempo habituara-se. O homem era bom para ele. Ele não sabia o que era um pai, mas sabia o que era uma tia insuportável. O senhor Eduardo não lhe batia, ajudava-o nos trabalhos da escola, nos testes e dava-lhe dinheiro. Tanto quanto soube, quem pagava os
livros era o sacristão e boa parte da roupa, senão toda, era oferecida também por ele.
Sentou-se na  cama e soube o que ia pensar. Já andava a pensá-lo  há uns meses. Ouvia os colegas, via  a televisão e os filmes, os poucos que a tia, já adormecida na velha cadeira de madeira, não sabia que ele via. Era era homossexual, como se diz agora? Maricas, como diziam na escola?  Nunca pediu nada, nunca disse nada. Às vezes, quando o senhor Eduardo lhe perguntava se ele tinha gostado, dizia que não sabia. Não poder falar com ninguém , não poder contar, entristecia-o. Sentia que  devia haver uma explicação, que talvez outros rapazes vivessem o mesmo.Talvez fizesse parte da vida.
Outras vezes decidia que não. Aquilo só acontecia porque vivia com  a tia, não tinha uma família normal, igual à dos colegas. 





Incomodava-o não ter a certeza se o que o senhor Eduardo lhe fizera  era normal. Subentendia que não, porque via na escola, nas conversas dos  rapazes e raparigas. Ele  e o senhor Eduardo  eram o quê?
Foi para a pequena secretária, abriu o caderno e um livro de exercícios de matemática e ficou assim. A tia e  a mulher continuavam  a murmurar na sala e ele apreciou estar  sozinho.  Não que a morte do senhor Eduardo o entristecesse, não sentia nada, mas alguma lhe faria falta, amanhã, sábado.
Foi à  sala dizer à tia que ia dar uma volta, precisava de arejar a cabeça da matemática. As duas mulheres olharam para ele  como um aborrecimento ( a tia olhava sempre), mas a tia, para grande espanto dele, não o proibiu.
Enquanto contou  isto tudo - e mais detalhes que  a minha memória engoliu -, Zapa falou como um sacerdote.  Voz pausada, corpo ora direito, ora  repoltreado na cadeira , cigarro enfiado nos dedos  acastanhados. Resolveu dar-me uma pista
-       Fugi nessa noite. Desde então que fujo. Dos que me ajudam e dos que me entregam.


A mensagem nem subliminar era.  Se te vendem por um punhado de euros, não podes esperar muito mais do que Zapa recebeu do sacristão.  Ainda assim a teoria da fuga  atortemelou-me. No meio daquela salgalhada – um suposto atentado em preparação – onde cabia a fuga? 
 O quarto era triste, Zapa era triste, os miúdos da cama  eram patéticos, Carlo era irrelevante. Aquela gente não matava sequer   um ladrão de galinhas. Alguma coisa estava errada, soube-o na altura, mas não consegui  reagir.
A conferência psicopolítica  acabou quando Zapa se ergueu da cadeira. Virou-me  as costas e sentou-se  de frente para  a janela, em meditação. Sai do quarto, fui pelas escadas, atravessei o pequeno lóbi a  cheguei à rua. Nem Carlo nem os miúdos.

sexta-feira, 22 de março de 2013


                                                   XIII

Carlo decidiu seguir por uma  estrada ainda mais secundária, junto à costa. Estaríamostalvez, por alturas do Bojo, quando vimos, ao fundo de  uma recta, a estrada bloqueada. Um jipe e um tractor, alguns homens e cães. Por um instante  figurei num  filme italiano dos anos  60. Campos de trigo e pasto,  de um lado e do outro, os homens  com elegantes casacos verdes de caça, alguns com caçadeiras debaixo do braço. Ao pé do tractor, dois empregados seguravam  quatro mastins, babosos e policiais, talvez dogues  argentinos.
Carlo abrandou. Não se viam outros carros, e aproximámo-nos da barreira. Foi então que notámos , do meu lado da estrada, na berma, caídos num talude, dois  desgraçados. Estvam cobertos de sangue. Eram miúdos, talvez de vinte e poucos anos, com ar de rastas. Ele com o cabelo entrançado,  ela de cabeleira vermelha curta. Tinham cortes  e arranhões nos braços, as calças rasgadas e estavam deitados de barriga para cima.




O que  temia aconteceu. O jipe recuou  um ou dois metros, para no s dar passagem, mas Carlo parou o carro,  abriu o vidro e perguntou. O que é que se  passa? Um dos homens, o mais velho, de cabelo branco  puxado atrás e suiças de ganadeiro, foi pedagógico -  Desanda senão fodo-te os cornos.
Carlo arrancou murmurando palavrões e dúvidas. Estavam mortos? Viste aquela merda? Filhos da puta. Sabíamos o que tinha acontecido, não sabíamos  por que tinha acontecido.  Muitos miúdos  dos arredores de  Marília , e de outras zonas do país,  rumavam a sul à procura de bebedeiras baratas e sol. Mesmo em Outubro era possível fazer a festa.   Alguns velhos proprietários da zona agrícola, sobreviventes à ruína do país,  que antecede  o turístico sul, não apeciavam a vagabundagem  .  Corriam notícias de pequenos  roubos e algazarras , mas a violência extrema era rara. Ou pleo menos assim pensava eu, enfiado na pena que sentis de mim.Disse a Carlo para parar no Bojo e tentar saber o que se passara.
- Sabia que eras dos nossos.
Não era, mas  pouco importava. O incidente, a juntar aos que se começavam a acumular – o gabinete do GASO destruído, a Castanhada -  era estranho. Dir-se-ia que a irritação escapava por pequenos buracos de toupeira.




A tabuleta  tinha a palavra  “deserto” escrita  a azul por baixo do nome da terra.  Uma  e outra casa baixa  e caiada, com rebordo azul antes das telhas,  e depois  a rua principal. Seguimos  a orientação “centro”,  “escola” e “Câmara Municipal”. Já não havia câmaras municipais, mas no Bojo o tempo parecia mais sábio e não se precipitava. Passámos  a igreja e  a tal câmara municipal, agora fechada, como todas, e estacionámos num largo  cercado de  oliveiras e laranjeiras. Nas zonas rurais, a DINATE não tinha representação. A autoridade e a lei eram  asseguradas por empresas privadas pagas pela CADE. Com frequência essas empresas alojavam-se no gabinete do GASO local.  Foi  para lá que nos dirigimos. 
Estava fechado, já passava das seis da tarde. Uma mulher , de bata e lenço na cabeça,  do outro lado do passeio, meteu conversa. O que queríamos, se vinhamos receber deles,  a esta hora  já não atendem ninguém etc.
Achei que não fazia mal perguntar-lhe. Queríamos  apresentar uma queixa. Onde estavam os seguranças?
-       Estão lá adiante na estrada a ajudar o senhor engenheiro.  Uma canalha andou  por aí ontem a ensarilhar mas  houve uns que   ficaram  dormir ali em baixo ao pé da farmácia e o senhor engenheiro levou-os daqui para fora.
Carlo  arengou qualquer coisa sobre   a inevitável corrupção  das empresas privadas de segurança, o grande capital, a colonização, as velhas alianças. Encolhi os ombros, aquela guerra não era minha. Carlo  começou finalmente  a ferver.
-       Estás muito enganado. Todas as guerras são nossas, porque não as escolhemos, elas é que nos escolhem.
Perguntei-lhe o que queria então fazer. Esperar ali, talvez no carro, talvez numa pensão? Para  quê? Para entrevistar os seguranças no dia seguinte? Carlo amuou. Voltámos ao carro. Abri o vidro e acendi um cigarro. E agora?



 Seguimos para sul. Carlo  olhava-me de soslaio. Ou eu era um cobarde  ou estava-me nas tintas . Expliquei-lhe que contra homens armados não há valentes  só mortos desarmados. Preferi interrogá-lo sobre  aquelas migrações de miúdos para Sul. Não apreciou. Não lês jornais em Setraga? Não há lá televisão? Vai-te lixar.
Fui  a remoer o episódio. Claro que sabia de conflitos entre bandos de miúdos que vagueavam pelo país e as populações locais, mas uma barreira na estrada e tipos meio-mortos na berma era outra realidade. 
Em parte Carlo tinha razão.  Há muito tempo que me  isolara, a televisão que via era à base de enlatados  americanos entorpecentes. Já nem sabia há quantos meses  não  via um telejornal do princípio  ao fim. E para quê?  Para me enfiarem entrevistas  de mordomos  e burocratas da CADE  muito satisfeitos com  a calma,  a ordem e  a recuperação? Ou com o regresso da normalidade? Passava. Nem havia calma nem haveria  normalidade. A calma  a ordem eram aparentes. Podem dizer-me que é assim em qualquer território, mas nós não éramos um território qualquer. O que estava à superfície era mantido por uma  enorme tensão sem política  nem ideologia. A tensão era mais religiosa e a sobrevivência era Deus.







Chegámos aos arredores de Farvira, já em pleno sul. As terreolas iam-se sucedendo, pontuadas por oficinas  e lojas abandonadas, mas já cheirava  a turismo.  Em casas particulares, as tabuletas anunciavam preços   imbatíveis. Bares, cafés e cervejarias, todos com as mesmas  esplanadas de cadeiras e mesas de plástico, os mesmos toldos e o mesmo patrocinador, uma cerveja dinamarquesa.
 A diferença para o resto do país  assentava na chegada rotineira de estrangeiros com dinheiro. Só que, ao contrário dos velhos tempos, eram cada vez menos e escoavam-se para os hoteís de luxo junto às praias. As grandes cadeias de hotelaria, as famosas multinacionais,  ficavam com os lucros e os locais eram vistos como uma praga de andrajosos que devia ser evitada  com firmeza.  Lembrei-me de uma reportagem  televisiva que tiha visto, há muitos anos, sobre a segregação entre turistas e nativos numa estância de luxo numa ilha da costa ocidental africana. Passando por uma amostra, provoquei o meu motorista.
-       Esta gente não se importa. Vivem como porcos
Carlo era esperto. Continuou calado mas traiu a calma ao fazer uma passagem de caixa desnecessária e o carro soluçou. O efeito não o impediu de embalar  para uma catilinária . Só me tinha trazido porque estava assim programado e dera a sua palavra.
 Isto era  bizarro, porque ele não me conheci a de lado nenhum ( o relacionamento por interposta pessoa não conta) e levava-me para  participar num atentado. O espírito Mano Negra não me era familiar, mas continuava a achar pateta aquele tipo de recrutamento. A curiosidade infantil é, contudo, sempre fiel. Resolvi alinhar e calei-me até chegarmos ao destino. Desta vez não era uma moradia bucólica. Carlo parou o carro no centro de Farvira, diante de um  hotel  barato. Não havia movimento nesta altura do ano  não estava ninguém na recepção.  Subimos num elevador a cheirar a cenoura cozida e  Carlo bateu à porta de um quarto no segundo andar. Um homem magro, com ar de  hippie  e velho como um hippie velho, abriu a porta e deu  um abraço a Carlo. Lá dentro, sentados na cama, estava um casal de garotos, já mais hippie chic, a partilhar um charro que empestava  o ambiente.  Mais do que surreal, era cómico.

segunda-feira, 4 de março de 2013


                                                 XII


Saí do restaurante e caminhei  com uma sensação agradável. A Castanhada, o lunáticos de Kara, Marília. Estava no centro político do país, um centro de que me tinha alheado nos últimos anos. Como um sobrevivente de um desastre  de carro, ainda andava com dificuldade, mas já andava outra vez. Também é verdade que não fazia ideia nenhuma para onde ir. Mais uns dias e o dinheiro acabava-se. Seja como for, o importante neste relato não é  a minha  história mas os factos que ocorreram nesse período. Já no hostel, resolvi  saber se os meus contactos da rede me responderiam.  Um deles atendeu, disse que pensou que eu tinha mudado de ideias. Chamava-se  Carlo e afinal  conhecia-o.  Fora   amigo de um amigo meu, em tempos cruzámo-nos em Setraga. Tinha uma vaga ideia de um Carlo, e à medida que os minutos passavam essa vaga  ideia reformou-se. Situei-o por volta de 2013, quando  já começara a  desinteressar-me  pela Grande Crise, pela diluição do país e pelos  debates políticos.
A memória do tempo em que conheci Carlo perturbou-me. Não se consegue escolher num desastre a pior parte, mas consegue-se apontar o instante que faz a divisão. Por exemplo, os dias felizes antes da notícia da morte de alguém amável e constituinte do nosso corpo. Ou a última vez que com ela falámos. Carlo entrava nesse cenário. Em 2013 ainda havia espera, portanto, esperança, e as pessoas ainda discutiam, defendiam ideias, exibiam ganas de dar o corpo ao manifesto.
Carlo veio buscar-me a meio da tarde. Era um tipo gordo, vestido como um adolescente,  na casa dos  quarenta.
-       Vamos para Farvira.



Favira, no Sul, a uma centena de quilómetros de Marília, foi em tempos  o centro turístico do país.  Todos os anos, centenas de milhares de turistas, sobretudo estrangeiros,   apanhavam sol, bebiam, comiam e sujavam. Os autacas destruíam o que ainda restava da paisagem natural, das praias dos pinhais, das velhas ruelas de cidades antigas. Ainda assim, a zona prosperou, porque as pessoas adiam as suspeitas e vivem das promesssas. Com a  Grande Crise, a procura de luxo aguentou-se, mas a decadência geral  foi inevitável.  Muitos  restaurantes e hotéis fecharam, sobrando algumas estâncias de luxo para os forâneos.   Essas ilhas ficaram rodedas  por um mar de  pequenos  negócios miseráveis, pensões baratas, hoteis  atamancados, escandinavos remediados perdidos de bêbados. Muitos negócios paralelos corriam à margem: droga e  mulheres à cabeça.
Era  curioso como me metiam nos carros se me levavam. Não me faziam perguntas, era tudo natural. Confrontei-o  e ele disse-me que se eu entrei no carro  é porque estava de acordo. Irrebatível.
Saímos de Marília, atravessando primeiro  as avenidas  de lojas para mordomos e pessoal da CADE e, depois, os bairros-dormitório com os seus prédios toscos agora semi-desertos. Há anos que  não fazia a saída sul de Marília e ao princípio tudo me pareceu familiar. Olhando com mais atenção,  notei que  quase todas as fábricas e armazéns tinham o parque de estacionamento vazio.  Carlo foi falando. Havia uma cena que eu tinha de ver.
A viagem ia ser  longa porque ele evitava , como toda  a gente normal, as autoestradas caríssimas. Ainda enviei uma mensagem a Laura a dizer que ia para Farvira com Carlo, um amigo.





Passámos  a ponte Europa e seguimos  pelo meio de antigos  arrozais tímidos e escondidos em campos  desertados.  Tinha feito as contas no hostel e estava preparado para qualquer coisa. Nada poderia ser pior do que andava  a viver.
Carlo era intímo de uns figurões da RENA. Não partilhava , no entanto, de forma total as ideias do movimento, o que só lhe fazia bem à saúde.



-       Até sou pela revolução e pela abolição da propriedade privada e essas merdas todas , mas seria preciso fuzilar muit agente.

Era um ponto de vista respeitável, mas extemporâneo.  Antes  de desmembrar a ordem instituída, a da CADE, seria necessário convencer primeiro as pessoas a passar anos de miséria ainda maior do que a que experimentaram em 2015 e 2016. E isso  seria  impossível. Restava, também, o pequeno detalhe da logística: armas e plasma.
Os doutrinários  do século XIX sabiam que muitos desgraçados vegetavam de tal modo que não se importavam , nada tinham a perder.  Connosco era diferente. A CADE dava assistência médica  quase gratuita, vendia os MONUCO a preços razoáveis,  as escolas  já eram todas públicas ( salvo um punhado de excpções para os mordomos  e funcionários da CADE) , porque a população ficara reduzida  a metade. O processo de desintegração foi lento, os símbolos sociais  foram desparecendo, as pessoas estiveram em risco de perder tudo. A CADE trouxe ordem e sobrevivência mínima. Que faria o povo com a revolução?
Carlo não se deixava impressionar pela realidade.  Ele e uns associados, alguns dissidentes da RENA e do NOSSO, já estavam noutra dimensão. Queriam aproveitar a cena colonial e tinham um plano especatular.
-       É  por isso que vamos a Farvira?

Não me respondeu. Continuou a conduzir o pequeno Renault e começou a olhar com afinco para o lado esquerdo da estrada.  Parámos  numa povoação  de que não recordo o nome, já com as casas brancas e baixas, uma terra limpa e sem habitantes.  Estacionou debaixo de uma grande árvore na  rua principal.  Olhou para todos os lados e ,de cada vez que  girava como um periscópio, certificava-se de que eu partilhava do cuidado conspirativo. Enganava-se. Tudo aquilo era cansativo.
- Estás à espera de ver o  KGB atrás de uma oliveira?

Foi a vez dele  não responder. Íamos comer qualquer coisa, eu disse que não, então um café. Andámos uns metros e entrámos numa tasca parada no tempo. Se lá fora  estava cinzento, lá dentro era de noite. Um velho bexigoso atrás do balcão de  madeira tumefacta, dois  ainda mais velhos sentados a uma mesa pequena  e redonda , ambos com uma taça de vinho à frente, como no antigamente.  Carlo enfiou um pão com fiambre e uma cerveja pelo enorme pescoço  abaixo, eu bebi o meu café. Inclinou a cabeça para mim e falou pausado, medindo o tom dramático.
-       Não estou a exagerar. A cena em Farvira vai ser espectacular, mas houve uma  fuga de informação, uma quebra de segurança. Alguém se chibou.








A cena em Farvira só me foi revelada  quando retomámos a viagem.  O grupo dele, a ANTENA ( Anarquia  para o Território  Nacional) , decidira assassinar um alto representante da CADE, que estava de férias num hotel de luxo a um quilómetro da cidade.
     - És doido. O que tenho  a ver com isso?  A tal cena é uma cena de ETA? Rídiculo, ineficaz, ultrapassado.
Carlo esperou que eu terminasse a minha arenga pomposa. Era , de facto, um tipo calmo. 
-       Isto foi muito discutido. Não nos move nenhum desejo de luta armada nem de comunicados com gorros na cabeça. A contece que tem de ser  dado um abanão. A violência é um meio, não um fim. As pessoas estão anestesiadas, resignadas.

Tentei  explicar-lhe que  as pessoas  anestesiadas e resignadas, uma classificação feita por quem passava o tempo nas discussões virtuais  e nas reuniões  conspirativas-boémias,  não entenderiam  qualquer ganho  no assassínio de um burocrata da CADE. Sim, eu sabia que este argumento ia  reduzir-me à condição de pragmático sem paixão, por isso  lancei-o sem esperança. Carlo mordeu o anzol.
-       Tens os vícios dos que te puseram na merda em que estás.    
Que ganho? Quem falou em ganho? Quando voltas as  costas a um patrão que te trata como merda também pensas em "ganho"?

Ter conseguido  afastá-lo da carapaça zen soube-me bem. Ele baralhava os planos. No individual, as emoções já são um ganho. No político e social, as emoções  só são um ganho se delas resultar uma prática concreta, palpável. Expliquei-lhe.
- Pensa em Churchill, durante a guerra. Toda a emoção pretendia coisas palpáveis como resistência, sacrifício, combate ao mercado negro.
Foi gasolina na fogueira.  Tirou a mão da caixa de velocidades e enfiou-a nos cabelos.
- Precisamente. Apesar de dares o exemplo de um imperialista , não está mal visto. Se conseguirmos, produziremos coisas palpáveis.

Não valia  a pena insistir. Carlo invertia o processo. Esperava que o acto definisse as emoções, apesar de lhe ter  dado o exemplo inverso. Combinámos que apenas  conheceria  algumas pessoas, juraria  silêncio e iria à minha vida.  Uma segurança conspirativa muito frouxa, e juvenil, mas aceitei.

domingo, 24 de fevereiro de 2013


                                                      XI

Levaram-me à estação, os três,   sem mais discursos, e avisaram que me contactariam em breve. 
Cheguei a Marília no comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos modulares) , por isso fui a pé até à praça que sabia ter pensões baratas. Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das nove quando fui comer  uma bifana engolida com uma cerveja pelo  preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu  telefonar aos meus contactos  da rede, estava enfartado de discussões, política e estética conspirativa.
Nessa noite, enquanto  jantava sem fome, estava a ser preparado – do outro lado da cidade-   o que ficou conhecido como  a Castanhada. Numa  área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários superiores da CADE, e alguns mordomos,  instalou-se  um obscuro  departamento -   a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba burocrática,  que dependia do mais mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE ao portão.
Tanto quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas , outra vez as castanhas, extraviou-se e foi para a zona com o museu ambulante  -  o fogareiro instalado num carrinho de  mão. Talvez o homem tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro, ao chegarem  a casa, quisessem comprar um  cartucho de castanhas para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem terá  sido espancado, ou talvez só empurrado, ou apenas insultado, pelos dois seguranças  do edifício da CADE. 
Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para  regularizar  um assunto  e assistiu a tudo. Num ápice, estavam à porta da bisonha Comissão dezenas de  membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram  a entrada  na casa, destruiram o que puderam e desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinete  principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque  um extraordinário ajuntamento  - a zona ficava  fora de mão e era  residencial -  organizara-se  na rua defronte da moradia ocupada. O que  era para ser  uma simples operação de limpeza  e detenção de um punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes lutadores  Nunca se chegou a saber ao certo  o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os  escreventes de hoje).







O que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado: alguns feridos , dois ou três  severos, várias detenções e um gabinete  arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes, para ser mais exacto, começaram a ser discutidos .  Os sítios  do congressos,  das univesidades e as tertúlia electrónicas   foram albergando uma teoria.  O que se passara  deu  corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se tratava da guetização, mas de  algo mais profundo: o país  estava colonizado.  Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram   na ideia e desenvolveram-na, indo  desenterrar os textos dos teóricos pós-colnialistas do século passado,  como Said e Fanon. Não se sabe  ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente. 
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão,  adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras,  causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia morna que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei  as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos  e informais  que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas  e beau monde em geral.
Deixei passar o resto da manhã, tomei um duche e um café que o estômago suportou e lá me arrastei até ao restaurante. Encontrei-a numa mesa no meio da sala principal, o que me deixou desconfortável e exposto. Perguntou-me o  que andara  a fazer e expliquei-lhe a moléstia. Directa ao assunto, quis saber o que eu pensava da tese da colonização. Não podia dizer muito. Não tinha visto televisão e os jornais que  espreitara  só referiram os acontecimentos sem segundas leituras.
Os media  funcionavam assim  desde a chegada da CADE. Salvo excepções individuais, ou seja, de  alguns jornalistas dentro do sistema mediático , e colectivas – pequenas publicações em papel e sítios da net alimentados por jornalistas independentes -,  os media espelhavam a voz dos donos do país. Não era novidade nenhuma. Num passado já distante, quando o país  se submeteu  a outros regimes de força, os jornalistas ( e os juízes) também obedeceram. Se houvesse uma mudança brusca, o que era  improvável, os media adaptar-se-iam rapidamente, saltando e pulando às ordens  dos novos comandos.
Ouvi a sua opinião e não fiquei impressionado. A CADE, como braço armado, no sentido poético, do Governo Central Europeu, ocupou o país e as suas elites dirigiam os assuntos locais. Estávamos, portanto, colonizados. Tive dúvidas sobre  a base da coisa, repeti a minha cassete.
-       É verdade que o governo europeu dirige os nossos assuntos, porque nos sustenta, mas não retira nenhum proveito, pelo menos directo. Sim , a teoria do cordão sanitário, de zonas tampão que não afectem o equliíbrio dos países estabilizados. Isso não é colonização. Tem de se apurar afórmula e, sobretudo, temos de perceber  para  que é que ela  serve.
Pegou no copo de um alvarinho  galego, muito bom, por sinal, mas não bebeu.
-       É para coisas dessas que contamos consigo. Para aprofundar.
O elogio implícito deixou-me indiferente. Noutros tempos teria funcionado, mas agora não produzia efeito nenhum. Quis saber  do grupo de Kara. Enquanto esperavámos pela sobremesa, uma simples banana para o meu estômago em convalescença ( lembro-me, porque ainda estava fraco,) ela decidiu falar. Recordo o relato, já que o afixei na memória com pregos rijos. Fingi que não me interessava, mas interessei-me.
Laura foi anestesista  num hospital em Dúrio nos anos da Grande Crise.  Começou a fazer cada vez menos  horas e a ganhava  cada vez menos. Em 2016, concorreu para vagas em Inglaterra e na Alemanha, mas não conseguiu  os lugares. Vivia com um irmão, desempregado e metido em sarilhos com a polícia por causa de protestos e arruaças. Nesse ano envolveu-se com um advogado, rebelde  e romântico,  que conheceu  durante um dos processos do irmão. Engravidou. O tipo , de início, disse-lhe que uma criança  era um raio de sol num futuro escuro, mas passadas umas semanas, desapareceu . Laura soube depois que o homem fora  para Marília  traabalhar  com as equipas de vanguarda  da CADE. Hoje é um mordomo  que colabora  com  a DINATE , na área de apoio jurídico. 
Laura deprimiu com tudo isto: sem dinheiro, sem o namorado e pai da criança, com um irmão imprestável. Abortou espontaeamente. Sem nada para fazer, e zangada com tudo, resolveu atirar-se às tertúlias electrónicas. Numa dessas cruzou-se  com Piter. Ao fim de algum tempo já não   falavam sobre  a ruína do regime, a confusão, as alternativa.  Falavam sobre cinema e poesia pré-rafaelita.







A seguir a esta oleosa anamnese íntima, a mulher  abriu  um bocadinho a janela sobre o grupo de Kara. Piter tinha sido jornalista num diário muito popular até ao início da Grande  Crise. Nunca ouvi falar dele. Estava sem emprego há quase dois  anos, fazia biscates intelectuais, como lhes chamava: trabalhos para colegas ainda empregados, uma ou outra coisa para as televisões, pequenas traduções.  Tinha dinheiro porque o pai era um conhecido industrial de hotelaria muito conhecido mesmo. Agora, depois da histórica clínica dela, a do amigo. Eu não era psiquiatra.
-       Laura, a sua história não me interessa.
A reacção dela foi de fibra. Exibiu o poder de encaixe de um  Joe Frasier . Tocou-me com pé ao longo da perna. Bebeu o vinho que tinha no copo e olhou-me com sal.
-    Fomo-nos juntado. Uns e outros. O Piter apresentou-me  a amigos Temos mais miolos do que os congressos e a resistências todas  multiplicadas por mil.  Queremos  fazer tudo de novo, queremos  inventar  um país.
Enfadado com o regresso do sintoma Professor Pardal,  lembrei-lhe que isso  que isso era conversa velha, parecia saída das  campanhas eleitorais do antigamente. Só faltava  as  saudades do futuro.
-       Não está a compreender, Gil. Você ainda não entendeu, pois não?
Tinha  a carteira pendurada nas costas da cadeira. Tirou-a, abriu-a e entregou-me uma folha de papel. Estava numerada, não recordo o número, mas parecia  ser uma conclusão. Ofereceu-ma. Li e guardei-a:


Inventar o país, só por acaso  corresponde aos limites do nosso território  actual. Partiremos deles.
Inventar um país significará redesenhar toda a estrutura social. Não queremos democracia nem igreja única. Não queremos a velha estrutura judiciária, financeira e administrativa. Não queremos sequer um país como vocês estão habituados a imaginar.
Pretendemos, dentro dos limites físicos actuais do nosso território, uma comunidade de comunidades. Cada cidade, cada vila, cada aldeia, será um orgão. Cada orgão decidirá como viver e não aceitará ordens de terceiros. Se vier a haver mil línguas diferentes, paciência. Se vier a haver mil orientações legais diferentes, paciência Se vier a haver mil concepções diferentes de educação, paciência.
Será um páis de países , se quiserem utilizar a antiga linguagem. Será a única forma de sobrevivência par aum território exposto a mil feridas. O que reunirá este espaço? A língua e a História. São almas  suficientes e nenhum burocrata  europeu as poderá  apagar.

Olhei por cima das mesas, para  a rua. Era fantástica a imaginação das pessoas. Utilizavam elementos patrióticos para justificar o desmembramento do país. 
Não me deixou pagar o almoço. Agradeci-lhe e disse que precisava de descansar  um bocado. Ela compreendeu e prometeu  contactar-me  mais tarde.








domingo, 17 de fevereiro de 2013



                                                        X



Nessa altura tive a certeza  de estar numa  casa de malucos. Arrependi-me de ter vindo e concentrei a minha atenção em sair dali o mais depressa possível. O problema é que estava sem carro algures  nos arredores dos arredores. 
Enquanto o porta-voz e o louro se levantaram para buscar um documento que eu devia ver,  fiz-me de ocupado  a aparar a cinza do cigarro para o cinzeiro. Quando levantei os olhos, o louro estava à minha frente e entregou-me o papel. Começava com a mesma arenga que Piter tinha feito, mas depois arregalei os olhos. Ainda o  tenho na memória, mais letra, menos  expressão:

“ Fazer um país  é, portanto, uma obrigação. Vivemos  isolados do resto da Europa e, por infecção , do resto  do mundo. Este isolamento não é físico nem comunicacional: os estrangeiros podem chegar, ninguém nos impede de interagir electronicamente com quem quisermos.  Acontece que não é necessário:  não contamos  para nada, nada temos para oferecer, nada podemos comprar.”

Fiz uma pausa e reparei que me tinham deixado sozinho Os três  despareceram para outra parte daquela gaiola de doidos.. Continuei a ler.

“  Os antigos modelos  estão esgotados. Não vivemos sob o capitalismo porque não produzimos riqueza, não podemos  ser socialistas porque nada existe para distribuir com justiça. A pequena  oligarquia é administrativa e vive do dinheiro da CADE”.

O resto do documento era no mesmo tom e acabava prometendo uma solução. Deixara-me levar. A  solução, afinal, era uma promessa. Iguais a muitos lunáticos. Laura, outra vez na sala, como uma pantera cuidadosa, sussurrou nas minhas costas, adivinhando-me  sem dificuldade os pensamentos.
     -  Roma e Pavia não se fizeram num dia.





Apesar da humidade, fomos os quatro para um pequeno terraço nas traseiras da casa. O louro  trouxe cafés, autênticos,  e umas bolachas de importação. Uma reunião magna estava a ser preparada em Marília. Nessa altura seria revelada  a solução.Lérias.
Enquanto parlapatavam, analisei o grupo. Havia qualquer coisa que não batia certa. Nunca tinha ouvido falar deles. Podiam ser, de facto, uns fantasistas bem intencionados, mas, os  métodos, e  a forma como me encontraram revelava isso, eram eficazes. Explicaram o que queriam de mim. O louro falou, sem convicção, como se passasse uma informação trivial.  Precisavam de pessoas que não estivessem comprometidas com o regime  que ruiu nem com a CADE. Precisavam de pessoas alheadas e sem nada  a perder:  se as conseguissem convencer,  convenceriam também os abonados enterrados em dívidas e compromissos. Eu não tinha ninguém  a cargo, sabia pensar  e escrever, e vinha  a caminho de Marília. Perguntei  como sabiam tanto. Responderam-me que  não se pode mudar o que não se conhece. Virei-me para Piter, que subentendi ser o líder ( explicou-me que não tinham líderes, eram transversais ou outra osgada do género) e perguntei-lhe como se faz um país.
-       Não faz.  Ninguém faz um país sentado  a uma secretária. Mesmo os que o tentaram, recorde o Congresso de Viena, sob a direcção do grande Metternich, acabaram por ver os seus esforços desperdiçados pouco tempo depois.
Não me apetecia jogar.Insistiu.
-       Compreenda. Não se trata de inventar  um país. Queremos dar uma forma diferente ao conceito.



Continuei  a leste. Quis manter-me impávido, mas franzi os olhos num sinal infantil de socorro por mais detalhes. Piter declarou que teríamos ocasião para desenvolver o assunto na tal reunião que haveria de ter lugar em breve.
Nunca cheguei a participar na tal reunião e ainda hoje a imagino. O que fiquei a saber posteriormente  não me deu uma perspectiva ampla, mas, como contarei mais tarde, deu-me o suficiente. Em todas as alturas de definição da vida das gentes existe a tentação voltar para trás. Este retorno só na aparência é benigno na sua ilusão de querer recomeçar. Não é um começo, é uma destruição.








































O início do fim do começo






















Levaram-me à estação, os três,   sem mais discursos, e avisaram que me contactariam em breve. Cheguei a Marília no comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos modulares) , por isso fui a pé até à parça que sabia ter pensões baratas. Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das nove quando fui comer  uma bifana engolida com uma cerveja pelo  preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu  telefonar aos meus contactos  da rede, estava enfartado de discussões, política e estética conspirativa.
Nessa noite, enquanto  jantava, angustiado, estava a ser preparado – do outro lado da cidade-   o que ficou conhecido como  a Castanhada. Numa  área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários superiores da CADE e alguns mordomos,  instalou-se  um obscuro  departamento,   a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba burocrática,  que dependia do mais mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE ao portão.







Tanto quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas extraviou-se e foi para a zona com o museu ambulante  -  o fogareiro instalado num carrinho de  mão. Talvez o homem tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro, ao chegarem  a casa, quisessem comprar um  cartucho de castanhas para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem tear  sido espancado, ou



talvez só empurrado, ou apenas insultado, pelso dois seguranças  do edifício da CADE. Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para  regularizar  um assunto q e assistiu a tudo. Num ápice, estvavam à porta da bisonha Comissão dezenas de  membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram  aentrada  na casa, destruiram o qu e puderam a desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinte  principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque  um extraordinário ajuntamento  , a zona ficava  fora de mão e era  residencial, como  já disse, organizara-se  na rua defronte da moradia ocupada. O que  era para ser  uma simples operação de limpeza  e detenção deum punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez
mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes.  Nunca se chegou a saber ao certo  o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os  escreventes de hoje)







O que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado: alguns feridos , dois ou três  severos, várias detenções e um gabinete  arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes, para ser mais excato, começaram a ser discutidos .  Os sítios  do congressos e das univesidades e a tertúlia electrónicas   foram albergando uam teoria.  O que se



passara  deu  corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se tratava da guetização, mas de  algo mais profundo: o país  estva colonizado. Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram  logo na ideia e desenvolveram-na, indo  desenterrar os textos dos teórico spós-colnialistas do século passado,  como Said e Fanon. Não se sabe  ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente.
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão,  adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras,  causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia geral que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei  as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos  e informais  que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas  e beau monde em geral.