quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

                                                                 VII




E era tudo o que me sobrava depois de 50 anos de vida. Bem, isso  e algumas rugas, um langor infeccioso e um desinteresse galopante.  Se me tivessem dito, há dez anos, que ia fazer isto, acreditava. Toda a gente  leva à pendura esta fantasia. O que me teria feito rir era a causa.
Tinha um destino:  Marília, ainda a capital do país.  Ao longo dos últimos meses também fui participando em algumas discussões em rede, evitando os alucinados que queriam fazer revoluções e reunir falanges, serpenteando  pelas alternativas de exércitos de um homem só. Esta gente, que  funcionava, como disse, em circuito fechado, aborrecia-me.  Os mordomos e a CADE ignoravam os rumores  e deixavam a pressão aliviar na rede. Levava  contactos de duas pessoas, nem sabia se homens ou mulheres ou mulheres,  que pareceram menos fantasiosas.
 Não era estranho, numa altura daquela, não ter amigos reais com quem pudesse ir ter.  Os laços foram-se perdendo e não era  situação a única responsável.  Nos últimos  anos, deixei de aparecer - não tinha paciência para suportar lamentos  nem alegria para conversar. Bem, talvez  a situação tivesse acelerado o meu isolamento, mas não o causou. Muitas pessoas ganharam  força com as dificuldades, mas a minha formação estóica derrotava-me. Não esperar nada do dia de amanhã era fácil, mas apreciar e despedir-me  do dia que passou, era impossível. A ditadura do presente, o motor estóico, parecia-me insuportável. Quando mais precisava do estoicismo, não fui capaz.



 Fechei  a porta do apartamento e fui a pé até à estação. Havia um primeiro  comboio da manhã  para Marília e   tinha  tempo. Desci as ruas vendo com olhos diferentes as mesmas casas. Restaurantes e cafés entaipados, várias lojas Delícia: todas iguais, onde se vendia desde  roupa usada a pacotes de leite. De vez em quando passavam bons carros, daqueles que se sabia levar mordomos ou gente a eles  associada. Os mendigos , fossem cegos, paralíticos ou simplesmente esfomeados, não podiam pedir na rua. A CADE organizou  as ZOSRA:  zonas de solidariedade recomendada. Eram geralmente recantos de jardins públicos, becos ou estaleiros abandonados . Os mendigos eram etiquetados e recebiam um cartão de beneficiário de uma determinada ZOSRA.  Se saíssem da circunscrição para ir pedir  nas zonas livres, eram levados para os centros de readaptação funcional ( CEREAL) do GASO local. Passavam a ter de trabalhar  sem salário em troca de duas refeições diárias e um telhado. Os mendigos  não gostavam  dos CEREAL por vários motivos, sendo o principal o tipo de trabalho: em regra, carregar e descarregar camiões  de mercadorias que o GASO  alugava para as tarefas necessárias ( abastecimentos de escolas, hospitais etc)




Setraga era agora uma cidade quieta. Fazia-me  lembrar a que só conhecera  dos livros, das descrições e das fotografias  de meados  do século passado. Antes da Grande Crise,  há apenas  meia dúzia de anos, estas mesmas ruas, estas mesmíssimas ruas, passeios e praças, barulhentas e opressivas, faziam-me  suspirar pelo sonho de uma casa na serra. Não só sonhos desses pareciam agora  delírios acrisolados , como dava um polegar, ou ambos, para voltar a ouvir e ver o clangor opressivo.
Cheguei à estação como um soldado desmobilizado, com a mochila às costas e a cabeça pesada. Comprei o bilhete e um jornal. Escolhi o Esperança, um diário do lóbi da CADE.  Sentei-me num banco e folhei-o. Gostava  de ver os nomes dos colunistas. Apreciar as letras e o asterisco que, repetido  em baixo, indicava a profissão do autor. Aprende-se bastante com a memória dos asteriscos. Muitos eram antigos patriotas que afinal nos convenciam, com números e fontes seguras, de que não havia outro caminho senão prosperar a longo prazo sob a CADE.
Um artigo de um emigrado, agora director numa grande empresa chinesa, explicava que o país tinha de ser paciente. Achei  infantil  o cliché China-paciência, mas a invectiva  fez-me pensar. Era aceitável  ser paciente com um ordenado de milhares de dólares e motorista. Por cá,  a  diferença entre a paciência  e  a resignação era  fininha.  A amnésia geral servia como uma luva aos antigos patriotas. As pessoas tinham deixado de discutir culpa e  culpados, o que nem era necessariamente mau, por isso muitos antigos patriotas puderam reciclar o discurso.







Os meus companheiros de viagem reuniram-se aos poucos na plataforma. Não era necessário ser muito observador para distinguir dois grupos. O dos abonados, que  incluía duas mulheres, um casal e três homens,  exibiam   roupas de marca já muito usadas, antiquadas mesmo, malas e mochilas, ar de quem foi deslocalizado. O GASO mudava as pessoas de uma cidade para a outra, às vezes  sem mais  antecedência do que dois ou três dias.  O lema era “ Onde está o trabalho,   estão as  pessoas”.  Uma amiga de Rita teve um bebé e recusou o abono do GASO para ir trabalhar no norte do país, a quase duzentos quilómetros da sua casa de Setraga. O marido deixou-a, os amigos  reprovaram-lhe  não só a recusa, que acharam obscena, como a decisão de ter tido  a criança. Hoje vive de esmolas.
No grupo dos mordomos  bispei um casal e  dois  homens. Bem vestidos, ela com uma mala de mão elegante, eles com pequenos  sacos de viagem a tiracolo, relógios  imponentes nos pulsos . Levavam jornais e falavam ao telemóvel. Lembro-me vagamente de que havia mais dois ou três homens inclassificáveis, talvez tipos da DINATE à civil, talvez apenas inclassificáveis.
 Como era habitual, o comboio ia quase vazio. As pessoas  não tinham grandes motivos para se deslocarem de um sítio para o outro, porque, apesar do slogan do GASO, mesmo o trabalho  para os abonados era pouco e os bilhetes de comboios eram mais caros do que os das camionetas. Pousei a mochila , recostei-me e gozei a privacidade.  O comboio arrancou e, ao fim de alguns quilómetros,  já só via mato, floresta e pequenas  povoações.
Não tinham decorrido mais de vinte  minutos quando o  toque do telemóvel me espantou. Não recebia chamadas a não ser dos meus filhos, e poucas, ou da Rita, o que naquele momento  era  improvável. Uma voz de homem chamou-me pelo nome e disse que me esperava na estação de Kara. E desligou.



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