terça-feira, 26 de março de 2013

                                                                           XIV




O hippie velho estendeu-me  a mão, seca e suja, e ofereceu-me uma cadeira. Os garotos saíram da cama sem uma palavra, apanharam um saco, ou coisa do género, do chão e abandonaram o quarto com Carlo. 
O velho tinha o cabelo branco penteado para trás e usava uma túnica florida gasta que mal cobria umas  sandálias arrebentadas.  Carlo não teve tempo  de fazer queixa de mim, por isso o homem entendeu  apresentar-se. Nunca saberei por que motivo, Zapa, era esse o seu nome, confidenciou-me detalhes  intímos da sua infância. Fiquei  com  a impressão de que quis justificar, de alguma forma, o uso da violência contra os poderosos. Escolheu um caminho  enleante. Resumido, o que me recordo, talvez  já acrescentado por mim, porque se o passado é um país estrangeiro, a memória é uma amiga infiel:


A mãe abandonou-o, tinha ele  quatro anos, para ir com um bancário reformado ( soube depois), o pai deixou de  espancá-lo logo a seguir, porque emigrou para a Suiça .
Ainda viveu com o tio paterno, um homem   bom, casado com uma mulher  má como as cobras e dois primos: um quase da sua idade, outro ainda bebé.  Durou pouco a experiência, porque o ordenado do tio, escriturário, era pequeno e as dívidas  muitas.  Lembra-se de dormir  num anexo minúsculo da cozinha, num colchão fino sobre o cimento.
Aos cinco anos,   passou para o outro lado da cidade, para casa de uma tia , a bem dizer, tia-avó, religiosa e solteirona, professora primária reformada. Quando  o tio o levou, num domingo - nunca mais esqueceu - , não entrou logo. Ficou no carro a olhar para a porta. Viu uma mulher de preto, magra, com toutiço e um nariz de bruxa. A mulher mandou entrar  o tio e ficou para trás a  olhar  para ele com olhos de águia. Lembra-se de ter pensado que o tio se devia ter enganado na porta. Era  o primeiro dia de Dezembro do ano de 1964.
Instalou-se como uma infecção. A tia destinou-lhe um dos dois quartos da casa, uma casa igual ás outras na correnteza da rua.
 Era um bairro   construído  há uma dezena de anos para alojar funcionários públicos, sobretudo professores.
Chegava da escola, fazia os deveres e ficava a atirar uma bola à parede do pequeno  pátio húmido até a tia o chamar para jantar.  Uma sopa de couve e feijão, sempre,  talvez um bife pregado, as mais das vezes massa com frango ou fiambre. Nem um beijo. 
Não podia receber amigos em casa, televisão só aos sábados ou quando a tia adormecia  na cadeira .
Quando começou a ficar homenzinho, a tia entendeu por bem arranjar-lhe um espécie de pai auxiliar. Começou a ir todos os sábados almoçar a casa do sacristão, o senhor Eduardo. Era um homem  magro, amarelo e com cara de coelho.  Ao fim de algum tempo, talvez a partir da quarta ou quinta vez, o senhor Eduardo começou a recebe-lo com um abraço muito forte. Depois o abraço passou a ser mais suave e o senhor Eduardo puxava-o e esfregava  as suas partes baixas nas  dele.
 Ao cabo de dois ou três meses, a cerimónia  que antecedia o almoço era sempre a mesma: sentavam-se num canapé de palhinha,  encostado  a uma parede da sala de jantar, o senhor Eduardo  tirava o zequinha do Zapa , como    chamava ao pénis,   para fora, massajava-o  e chupava-o. Nessa altura teria Zapa  uns onze anos.
Uma vez disse à tia que não queria voltar a casa do sacristão. A tia ferrou-lhe duas lambadas. Soube então que um dia devolveria, com juros, a estaladas. No entretanto, aceitou a explicação que  a tia, a seguir ao método educativo, lhe deu: o senhor Eduardo estava  ajudá-los e não havia nenhuma razão para recusar.
Os dias não existiam. A escola era aborrecida porque não lhe  ensinava o que precisava de saber. Tinha agora treze anos e não sabia por que  se  lembrava bem do   pai, não sabia por que  a mãe fora embora, não sabia se gostava do que o senhor Eduardo lhe fazia. Sabia, isso era certo, que os miúdos da escola o achavam diferente. Certa vez , umas garotas estavam a contar piadas porcas e metu-se  na conversa. Declarou que nenhum pénis cabe por inteiro na boca de uma pessoa e que é necessário  fazer como nos gelados. As garotas ficaram especadas a olhar para ele e desde então nunca mais  o deixaram aproximar. Os rapazes desprezavam-no. Vestia-se com roupa de há cinquenta anos, tinha um buço horrível, o cabelo cortado à tijela, era gordo e ria a despropósito.
Num belo dia chegou a casa e viu a tia sentada na sala acompanhada de uma mulher que reconheceu mal. Era a irmã do sacristão, que tinha vindo a dar a triste notícia da morte do  senhor Eduardo. Parece que de ataque cardíaco fulminante. Sentou-se em frente delas ainda com os cadernos sobre os joelhos e voltou  a reconhecer aquela sensação estranha de não sentir nada. A mulher era amiga da irmã do sacristão. Toda a gente estava espantada, porque o senhor Eduardo era um homem muito pacato, nada a dado  a comoções, levava uma vida  tão sossegada.
Pediu licença para ir para o quarto  fazer os trabalhos de casa. Há anos que conhecia o senhor Eduardo, o caminho para casa do senhor Eduardo, as mãos do senhor Eduardo, a boca do senhor Eduardo, o cheiro do senhor Eduardo. Durante esse  tempo habituara-se. O homem era bom para ele. Ele não sabia o que era um pai, mas sabia o que era uma tia insuportável. O senhor Eduardo não lhe batia, ajudava-o nos trabalhos da escola, nos testes e dava-lhe dinheiro. Tanto quanto soube, quem pagava os
livros era o sacristão e boa parte da roupa, senão toda, era oferecida também por ele.
Sentou-se na  cama e soube o que ia pensar. Já andava a pensá-lo  há uns meses. Ouvia os colegas, via  a televisão e os filmes, os poucos que a tia, já adormecida na velha cadeira de madeira, não sabia que ele via. Era era homossexual, como se diz agora? Maricas, como diziam na escola?  Nunca pediu nada, nunca disse nada. Às vezes, quando o senhor Eduardo lhe perguntava se ele tinha gostado, dizia que não sabia. Não poder falar com ninguém , não poder contar, entristecia-o. Sentia que  devia haver uma explicação, que talvez outros rapazes vivessem o mesmo.Talvez fizesse parte da vida.
Outras vezes decidia que não. Aquilo só acontecia porque vivia com  a tia, não tinha uma família normal, igual à dos colegas. 





Incomodava-o não ter a certeza se o que o senhor Eduardo lhe fizera  era normal. Subentendia que não, porque via na escola, nas conversas dos  rapazes e raparigas. Ele  e o senhor Eduardo  eram o quê?
Foi para a pequena secretária, abriu o caderno e um livro de exercícios de matemática e ficou assim. A tia e  a mulher continuavam  a murmurar na sala e ele apreciou estar  sozinho.  Não que a morte do senhor Eduardo o entristecesse, não sentia nada, mas alguma lhe faria falta, amanhã, sábado.
Foi à  sala dizer à tia que ia dar uma volta, precisava de arejar a cabeça da matemática. As duas mulheres olharam para ele  como um aborrecimento ( a tia olhava sempre), mas a tia, para grande espanto dele, não o proibiu.
Enquanto contou  isto tudo - e mais detalhes que  a minha memória engoliu -, Zapa falou como um sacerdote.  Voz pausada, corpo ora direito, ora  repoltreado na cadeira , cigarro enfiado nos dedos  acastanhados. Resolveu dar-me uma pista
-       Fugi nessa noite. Desde então que fujo. Dos que me ajudam e dos que me entregam.


A mensagem nem subliminar era.  Se te vendem por um punhado de euros, não podes esperar muito mais do que Zapa recebeu do sacristão.  Ainda assim a teoria da fuga  atortemelou-me. No meio daquela salgalhada – um suposto atentado em preparação – onde cabia a fuga? 
 O quarto era triste, Zapa era triste, os miúdos da cama  eram patéticos, Carlo era irrelevante. Aquela gente não matava sequer   um ladrão de galinhas. Alguma coisa estava errada, soube-o na altura, mas não consegui  reagir.
A conferência psicopolítica  acabou quando Zapa se ergueu da cadeira. Virou-me  as costas e sentou-se  de frente para  a janela, em meditação. Sai do quarto, fui pelas escadas, atravessei o pequeno lóbi a  cheguei à rua. Nem Carlo nem os miúdos.

sexta-feira, 22 de março de 2013


                                                   XIII

Carlo decidiu seguir por uma  estrada ainda mais secundária, junto à costa. Estaríamostalvez, por alturas do Bojo, quando vimos, ao fundo de  uma recta, a estrada bloqueada. Um jipe e um tractor, alguns homens e cães. Por um instante  figurei num  filme italiano dos anos  60. Campos de trigo e pasto,  de um lado e do outro, os homens  com elegantes casacos verdes de caça, alguns com caçadeiras debaixo do braço. Ao pé do tractor, dois empregados seguravam  quatro mastins, babosos e policiais, talvez dogues  argentinos.
Carlo abrandou. Não se viam outros carros, e aproximámo-nos da barreira. Foi então que notámos , do meu lado da estrada, na berma, caídos num talude, dois  desgraçados. Estvam cobertos de sangue. Eram miúdos, talvez de vinte e poucos anos, com ar de rastas. Ele com o cabelo entrançado,  ela de cabeleira vermelha curta. Tinham cortes  e arranhões nos braços, as calças rasgadas e estavam deitados de barriga para cima.




O que  temia aconteceu. O jipe recuou  um ou dois metros, para no s dar passagem, mas Carlo parou o carro,  abriu o vidro e perguntou. O que é que se  passa? Um dos homens, o mais velho, de cabelo branco  puxado atrás e suiças de ganadeiro, foi pedagógico -  Desanda senão fodo-te os cornos.
Carlo arrancou murmurando palavrões e dúvidas. Estavam mortos? Viste aquela merda? Filhos da puta. Sabíamos o que tinha acontecido, não sabíamos  por que tinha acontecido.  Muitos miúdos  dos arredores de  Marília , e de outras zonas do país,  rumavam a sul à procura de bebedeiras baratas e sol. Mesmo em Outubro era possível fazer a festa.   Alguns velhos proprietários da zona agrícola, sobreviventes à ruína do país,  que antecede  o turístico sul, não apeciavam a vagabundagem  .  Corriam notícias de pequenos  roubos e algazarras , mas a violência extrema era rara. Ou pleo menos assim pensava eu, enfiado na pena que sentis de mim.Disse a Carlo para parar no Bojo e tentar saber o que se passara.
- Sabia que eras dos nossos.
Não era, mas  pouco importava. O incidente, a juntar aos que se começavam a acumular – o gabinete do GASO destruído, a Castanhada -  era estranho. Dir-se-ia que a irritação escapava por pequenos buracos de toupeira.




A tabuleta  tinha a palavra  “deserto” escrita  a azul por baixo do nome da terra.  Uma  e outra casa baixa  e caiada, com rebordo azul antes das telhas,  e depois  a rua principal. Seguimos  a orientação “centro”,  “escola” e “Câmara Municipal”. Já não havia câmaras municipais, mas no Bojo o tempo parecia mais sábio e não se precipitava. Passámos  a igreja e  a tal câmara municipal, agora fechada, como todas, e estacionámos num largo  cercado de  oliveiras e laranjeiras. Nas zonas rurais, a DINATE não tinha representação. A autoridade e a lei eram  asseguradas por empresas privadas pagas pela CADE. Com frequência essas empresas alojavam-se no gabinete do GASO local.  Foi  para lá que nos dirigimos. 
Estava fechado, já passava das seis da tarde. Uma mulher , de bata e lenço na cabeça,  do outro lado do passeio, meteu conversa. O que queríamos, se vinhamos receber deles,  a esta hora  já não atendem ninguém etc.
Achei que não fazia mal perguntar-lhe. Queríamos  apresentar uma queixa. Onde estavam os seguranças?
-       Estão lá adiante na estrada a ajudar o senhor engenheiro.  Uma canalha andou  por aí ontem a ensarilhar mas  houve uns que   ficaram  dormir ali em baixo ao pé da farmácia e o senhor engenheiro levou-os daqui para fora.
Carlo  arengou qualquer coisa sobre   a inevitável corrupção  das empresas privadas de segurança, o grande capital, a colonização, as velhas alianças. Encolhi os ombros, aquela guerra não era minha. Carlo  começou finalmente  a ferver.
-       Estás muito enganado. Todas as guerras são nossas, porque não as escolhemos, elas é que nos escolhem.
Perguntei-lhe o que queria então fazer. Esperar ali, talvez no carro, talvez numa pensão? Para  quê? Para entrevistar os seguranças no dia seguinte? Carlo amuou. Voltámos ao carro. Abri o vidro e acendi um cigarro. E agora?



 Seguimos para sul. Carlo  olhava-me de soslaio. Ou eu era um cobarde  ou estava-me nas tintas . Expliquei-lhe que contra homens armados não há valentes  só mortos desarmados. Preferi interrogá-lo sobre  aquelas migrações de miúdos para Sul. Não apreciou. Não lês jornais em Setraga? Não há lá televisão? Vai-te lixar.
Fui  a remoer o episódio. Claro que sabia de conflitos entre bandos de miúdos que vagueavam pelo país e as populações locais, mas uma barreira na estrada e tipos meio-mortos na berma era outra realidade. 
Em parte Carlo tinha razão.  Há muito tempo que me  isolara, a televisão que via era à base de enlatados  americanos entorpecentes. Já nem sabia há quantos meses  não  via um telejornal do princípio  ao fim. E para quê?  Para me enfiarem entrevistas  de mordomos  e burocratas da CADE  muito satisfeitos com  a calma,  a ordem e  a recuperação? Ou com o regresso da normalidade? Passava. Nem havia calma nem haveria  normalidade. A calma  a ordem eram aparentes. Podem dizer-me que é assim em qualquer território, mas nós não éramos um território qualquer. O que estava à superfície era mantido por uma  enorme tensão sem política  nem ideologia. A tensão era mais religiosa e a sobrevivência era Deus.







Chegámos aos arredores de Farvira, já em pleno sul. As terreolas iam-se sucedendo, pontuadas por oficinas  e lojas abandonadas, mas já cheirava  a turismo.  Em casas particulares, as tabuletas anunciavam preços   imbatíveis. Bares, cafés e cervejarias, todos com as mesmas  esplanadas de cadeiras e mesas de plástico, os mesmos toldos e o mesmo patrocinador, uma cerveja dinamarquesa.
 A diferença para o resto do país  assentava na chegada rotineira de estrangeiros com dinheiro. Só que, ao contrário dos velhos tempos, eram cada vez menos e escoavam-se para os hoteís de luxo junto às praias. As grandes cadeias de hotelaria, as famosas multinacionais,  ficavam com os lucros e os locais eram vistos como uma praga de andrajosos que devia ser evitada  com firmeza.  Lembrei-me de uma reportagem  televisiva que tiha visto, há muitos anos, sobre a segregação entre turistas e nativos numa estância de luxo numa ilha da costa ocidental africana. Passando por uma amostra, provoquei o meu motorista.
-       Esta gente não se importa. Vivem como porcos
Carlo era esperto. Continuou calado mas traiu a calma ao fazer uma passagem de caixa desnecessária e o carro soluçou. O efeito não o impediu de embalar  para uma catilinária . Só me tinha trazido porque estava assim programado e dera a sua palavra.
 Isto era  bizarro, porque ele não me conheci a de lado nenhum ( o relacionamento por interposta pessoa não conta) e levava-me para  participar num atentado. O espírito Mano Negra não me era familiar, mas continuava a achar pateta aquele tipo de recrutamento. A curiosidade infantil é, contudo, sempre fiel. Resolvi alinhar e calei-me até chegarmos ao destino. Desta vez não era uma moradia bucólica. Carlo parou o carro no centro de Farvira, diante de um  hotel  barato. Não havia movimento nesta altura do ano  não estava ninguém na recepção.  Subimos num elevador a cheirar a cenoura cozida e  Carlo bateu à porta de um quarto no segundo andar. Um homem magro, com ar de  hippie  e velho como um hippie velho, abriu a porta e deu  um abraço a Carlo. Lá dentro, sentados na cama, estava um casal de garotos, já mais hippie chic, a partilhar um charro que empestava  o ambiente.  Mais do que surreal, era cómico.

segunda-feira, 4 de março de 2013


                                                 XII


Saí do restaurante e caminhei  com uma sensação agradável. A Castanhada, o lunáticos de Kara, Marília. Estava no centro político do país, um centro de que me tinha alheado nos últimos anos. Como um sobrevivente de um desastre  de carro, ainda andava com dificuldade, mas já andava outra vez. Também é verdade que não fazia ideia nenhuma para onde ir. Mais uns dias e o dinheiro acabava-se. Seja como for, o importante neste relato não é  a minha  história mas os factos que ocorreram nesse período. Já no hostel, resolvi  saber se os meus contactos da rede me responderiam.  Um deles atendeu, disse que pensou que eu tinha mudado de ideias. Chamava-se  Carlo e afinal  conhecia-o.  Fora   amigo de um amigo meu, em tempos cruzámo-nos em Setraga. Tinha uma vaga ideia de um Carlo, e à medida que os minutos passavam essa vaga  ideia reformou-se. Situei-o por volta de 2013, quando  já começara a  desinteressar-me  pela Grande Crise, pela diluição do país e pelos  debates políticos.
A memória do tempo em que conheci Carlo perturbou-me. Não se consegue escolher num desastre a pior parte, mas consegue-se apontar o instante que faz a divisão. Por exemplo, os dias felizes antes da notícia da morte de alguém amável e constituinte do nosso corpo. Ou a última vez que com ela falámos. Carlo entrava nesse cenário. Em 2013 ainda havia espera, portanto, esperança, e as pessoas ainda discutiam, defendiam ideias, exibiam ganas de dar o corpo ao manifesto.
Carlo veio buscar-me a meio da tarde. Era um tipo gordo, vestido como um adolescente,  na casa dos  quarenta.
-       Vamos para Farvira.



Favira, no Sul, a uma centena de quilómetros de Marília, foi em tempos  o centro turístico do país.  Todos os anos, centenas de milhares de turistas, sobretudo estrangeiros,   apanhavam sol, bebiam, comiam e sujavam. Os autacas destruíam o que ainda restava da paisagem natural, das praias dos pinhais, das velhas ruelas de cidades antigas. Ainda assim, a zona prosperou, porque as pessoas adiam as suspeitas e vivem das promesssas. Com a  Grande Crise, a procura de luxo aguentou-se, mas a decadência geral  foi inevitável.  Muitos  restaurantes e hotéis fecharam, sobrando algumas estâncias de luxo para os forâneos.   Essas ilhas ficaram rodedas  por um mar de  pequenos  negócios miseráveis, pensões baratas, hoteis  atamancados, escandinavos remediados perdidos de bêbados. Muitos negócios paralelos corriam à margem: droga e  mulheres à cabeça.
Era  curioso como me metiam nos carros se me levavam. Não me faziam perguntas, era tudo natural. Confrontei-o  e ele disse-me que se eu entrei no carro  é porque estava de acordo. Irrebatível.
Saímos de Marília, atravessando primeiro  as avenidas  de lojas para mordomos e pessoal da CADE e, depois, os bairros-dormitório com os seus prédios toscos agora semi-desertos. Há anos que  não fazia a saída sul de Marília e ao princípio tudo me pareceu familiar. Olhando com mais atenção,  notei que  quase todas as fábricas e armazéns tinham o parque de estacionamento vazio.  Carlo foi falando. Havia uma cena que eu tinha de ver.
A viagem ia ser  longa porque ele evitava , como toda  a gente normal, as autoestradas caríssimas. Ainda enviei uma mensagem a Laura a dizer que ia para Farvira com Carlo, um amigo.





Passámos  a ponte Europa e seguimos  pelo meio de antigos  arrozais tímidos e escondidos em campos  desertados.  Tinha feito as contas no hostel e estava preparado para qualquer coisa. Nada poderia ser pior do que andava  a viver.
Carlo era intímo de uns figurões da RENA. Não partilhava , no entanto, de forma total as ideias do movimento, o que só lhe fazia bem à saúde.



-       Até sou pela revolução e pela abolição da propriedade privada e essas merdas todas , mas seria preciso fuzilar muit agente.

Era um ponto de vista respeitável, mas extemporâneo.  Antes  de desmembrar a ordem instituída, a da CADE, seria necessário convencer primeiro as pessoas a passar anos de miséria ainda maior do que a que experimentaram em 2015 e 2016. E isso  seria  impossível. Restava, também, o pequeno detalhe da logística: armas e plasma.
Os doutrinários  do século XIX sabiam que muitos desgraçados vegetavam de tal modo que não se importavam , nada tinham a perder.  Connosco era diferente. A CADE dava assistência médica  quase gratuita, vendia os MONUCO a preços razoáveis,  as escolas  já eram todas públicas ( salvo um punhado de excpções para os mordomos  e funcionários da CADE) , porque a população ficara reduzida  a metade. O processo de desintegração foi lento, os símbolos sociais  foram desparecendo, as pessoas estiveram em risco de perder tudo. A CADE trouxe ordem e sobrevivência mínima. Que faria o povo com a revolução?
Carlo não se deixava impressionar pela realidade.  Ele e uns associados, alguns dissidentes da RENA e do NOSSO, já estavam noutra dimensão. Queriam aproveitar a cena colonial e tinham um plano especatular.
-       É  por isso que vamos a Farvira?

Não me respondeu. Continuou a conduzir o pequeno Renault e começou a olhar com afinco para o lado esquerdo da estrada.  Parámos  numa povoação  de que não recordo o nome, já com as casas brancas e baixas, uma terra limpa e sem habitantes.  Estacionou debaixo de uma grande árvore na  rua principal.  Olhou para todos os lados e ,de cada vez que  girava como um periscópio, certificava-se de que eu partilhava do cuidado conspirativo. Enganava-se. Tudo aquilo era cansativo.
- Estás à espera de ver o  KGB atrás de uma oliveira?

Foi a vez dele  não responder. Íamos comer qualquer coisa, eu disse que não, então um café. Andámos uns metros e entrámos numa tasca parada no tempo. Se lá fora  estava cinzento, lá dentro era de noite. Um velho bexigoso atrás do balcão de  madeira tumefacta, dois  ainda mais velhos sentados a uma mesa pequena  e redonda , ambos com uma taça de vinho à frente, como no antigamente.  Carlo enfiou um pão com fiambre e uma cerveja pelo enorme pescoço  abaixo, eu bebi o meu café. Inclinou a cabeça para mim e falou pausado, medindo o tom dramático.
-       Não estou a exagerar. A cena em Farvira vai ser espectacular, mas houve uma  fuga de informação, uma quebra de segurança. Alguém se chibou.








A cena em Farvira só me foi revelada  quando retomámos a viagem.  O grupo dele, a ANTENA ( Anarquia  para o Território  Nacional) , decidira assassinar um alto representante da CADE, que estava de férias num hotel de luxo a um quilómetro da cidade.
     - És doido. O que tenho  a ver com isso?  A tal cena é uma cena de ETA? Rídiculo, ineficaz, ultrapassado.
Carlo esperou que eu terminasse a minha arenga pomposa. Era , de facto, um tipo calmo. 
-       Isto foi muito discutido. Não nos move nenhum desejo de luta armada nem de comunicados com gorros na cabeça. A contece que tem de ser  dado um abanão. A violência é um meio, não um fim. As pessoas estão anestesiadas, resignadas.

Tentei  explicar-lhe que  as pessoas  anestesiadas e resignadas, uma classificação feita por quem passava o tempo nas discussões virtuais  e nas reuniões  conspirativas-boémias,  não entenderiam  qualquer ganho  no assassínio de um burocrata da CADE. Sim, eu sabia que este argumento ia  reduzir-me à condição de pragmático sem paixão, por isso  lancei-o sem esperança. Carlo mordeu o anzol.
-       Tens os vícios dos que te puseram na merda em que estás.    
Que ganho? Quem falou em ganho? Quando voltas as  costas a um patrão que te trata como merda também pensas em "ganho"?

Ter conseguido  afastá-lo da carapaça zen soube-me bem. Ele baralhava os planos. No individual, as emoções já são um ganho. No político e social, as emoções  só são um ganho se delas resultar uma prática concreta, palpável. Expliquei-lhe.
- Pensa em Churchill, durante a guerra. Toda a emoção pretendia coisas palpáveis como resistência, sacrifício, combate ao mercado negro.
Foi gasolina na fogueira.  Tirou a mão da caixa de velocidades e enfiou-a nos cabelos.
- Precisamente. Apesar de dares o exemplo de um imperialista , não está mal visto. Se conseguirmos, produziremos coisas palpáveis.

Não valia  a pena insistir. Carlo invertia o processo. Esperava que o acto definisse as emoções, apesar de lhe ter  dado o exemplo inverso. Combinámos que apenas  conheceria  algumas pessoas, juraria  silêncio e iria à minha vida.  Uma segurança conspirativa muito frouxa, e juvenil, mas aceitei.