sexta-feira, 22 de março de 2013


                                                   XIII

Carlo decidiu seguir por uma  estrada ainda mais secundária, junto à costa. Estaríamostalvez, por alturas do Bojo, quando vimos, ao fundo de  uma recta, a estrada bloqueada. Um jipe e um tractor, alguns homens e cães. Por um instante  figurei num  filme italiano dos anos  60. Campos de trigo e pasto,  de um lado e do outro, os homens  com elegantes casacos verdes de caça, alguns com caçadeiras debaixo do braço. Ao pé do tractor, dois empregados seguravam  quatro mastins, babosos e policiais, talvez dogues  argentinos.
Carlo abrandou. Não se viam outros carros, e aproximámo-nos da barreira. Foi então que notámos , do meu lado da estrada, na berma, caídos num talude, dois  desgraçados. Estvam cobertos de sangue. Eram miúdos, talvez de vinte e poucos anos, com ar de rastas. Ele com o cabelo entrançado,  ela de cabeleira vermelha curta. Tinham cortes  e arranhões nos braços, as calças rasgadas e estavam deitados de barriga para cima.




O que  temia aconteceu. O jipe recuou  um ou dois metros, para no s dar passagem, mas Carlo parou o carro,  abriu o vidro e perguntou. O que é que se  passa? Um dos homens, o mais velho, de cabelo branco  puxado atrás e suiças de ganadeiro, foi pedagógico -  Desanda senão fodo-te os cornos.
Carlo arrancou murmurando palavrões e dúvidas. Estavam mortos? Viste aquela merda? Filhos da puta. Sabíamos o que tinha acontecido, não sabíamos  por que tinha acontecido.  Muitos miúdos  dos arredores de  Marília , e de outras zonas do país,  rumavam a sul à procura de bebedeiras baratas e sol. Mesmo em Outubro era possível fazer a festa.   Alguns velhos proprietários da zona agrícola, sobreviventes à ruína do país,  que antecede  o turístico sul, não apeciavam a vagabundagem  .  Corriam notícias de pequenos  roubos e algazarras , mas a violência extrema era rara. Ou pleo menos assim pensava eu, enfiado na pena que sentis de mim.Disse a Carlo para parar no Bojo e tentar saber o que se passara.
- Sabia que eras dos nossos.
Não era, mas  pouco importava. O incidente, a juntar aos que se começavam a acumular – o gabinete do GASO destruído, a Castanhada -  era estranho. Dir-se-ia que a irritação escapava por pequenos buracos de toupeira.




A tabuleta  tinha a palavra  “deserto” escrita  a azul por baixo do nome da terra.  Uma  e outra casa baixa  e caiada, com rebordo azul antes das telhas,  e depois  a rua principal. Seguimos  a orientação “centro”,  “escola” e “Câmara Municipal”. Já não havia câmaras municipais, mas no Bojo o tempo parecia mais sábio e não se precipitava. Passámos  a igreja e  a tal câmara municipal, agora fechada, como todas, e estacionámos num largo  cercado de  oliveiras e laranjeiras. Nas zonas rurais, a DINATE não tinha representação. A autoridade e a lei eram  asseguradas por empresas privadas pagas pela CADE. Com frequência essas empresas alojavam-se no gabinete do GASO local.  Foi  para lá que nos dirigimos. 
Estava fechado, já passava das seis da tarde. Uma mulher , de bata e lenço na cabeça,  do outro lado do passeio, meteu conversa. O que queríamos, se vinhamos receber deles,  a esta hora  já não atendem ninguém etc.
Achei que não fazia mal perguntar-lhe. Queríamos  apresentar uma queixa. Onde estavam os seguranças?
-       Estão lá adiante na estrada a ajudar o senhor engenheiro.  Uma canalha andou  por aí ontem a ensarilhar mas  houve uns que   ficaram  dormir ali em baixo ao pé da farmácia e o senhor engenheiro levou-os daqui para fora.
Carlo  arengou qualquer coisa sobre   a inevitável corrupção  das empresas privadas de segurança, o grande capital, a colonização, as velhas alianças. Encolhi os ombros, aquela guerra não era minha. Carlo  começou finalmente  a ferver.
-       Estás muito enganado. Todas as guerras são nossas, porque não as escolhemos, elas é que nos escolhem.
Perguntei-lhe o que queria então fazer. Esperar ali, talvez no carro, talvez numa pensão? Para  quê? Para entrevistar os seguranças no dia seguinte? Carlo amuou. Voltámos ao carro. Abri o vidro e acendi um cigarro. E agora?



 Seguimos para sul. Carlo  olhava-me de soslaio. Ou eu era um cobarde  ou estava-me nas tintas . Expliquei-lhe que contra homens armados não há valentes  só mortos desarmados. Preferi interrogá-lo sobre  aquelas migrações de miúdos para Sul. Não apreciou. Não lês jornais em Setraga? Não há lá televisão? Vai-te lixar.
Fui  a remoer o episódio. Claro que sabia de conflitos entre bandos de miúdos que vagueavam pelo país e as populações locais, mas uma barreira na estrada e tipos meio-mortos na berma era outra realidade. 
Em parte Carlo tinha razão.  Há muito tempo que me  isolara, a televisão que via era à base de enlatados  americanos entorpecentes. Já nem sabia há quantos meses  não  via um telejornal do princípio  ao fim. E para quê?  Para me enfiarem entrevistas  de mordomos  e burocratas da CADE  muito satisfeitos com  a calma,  a ordem e  a recuperação? Ou com o regresso da normalidade? Passava. Nem havia calma nem haveria  normalidade. A calma  a ordem eram aparentes. Podem dizer-me que é assim em qualquer território, mas nós não éramos um território qualquer. O que estava à superfície era mantido por uma  enorme tensão sem política  nem ideologia. A tensão era mais religiosa e a sobrevivência era Deus.







Chegámos aos arredores de Farvira, já em pleno sul. As terreolas iam-se sucedendo, pontuadas por oficinas  e lojas abandonadas, mas já cheirava  a turismo.  Em casas particulares, as tabuletas anunciavam preços   imbatíveis. Bares, cafés e cervejarias, todos com as mesmas  esplanadas de cadeiras e mesas de plástico, os mesmos toldos e o mesmo patrocinador, uma cerveja dinamarquesa.
 A diferença para o resto do país  assentava na chegada rotineira de estrangeiros com dinheiro. Só que, ao contrário dos velhos tempos, eram cada vez menos e escoavam-se para os hoteís de luxo junto às praias. As grandes cadeias de hotelaria, as famosas multinacionais,  ficavam com os lucros e os locais eram vistos como uma praga de andrajosos que devia ser evitada  com firmeza.  Lembrei-me de uma reportagem  televisiva que tiha visto, há muitos anos, sobre a segregação entre turistas e nativos numa estância de luxo numa ilha da costa ocidental africana. Passando por uma amostra, provoquei o meu motorista.
-       Esta gente não se importa. Vivem como porcos
Carlo era esperto. Continuou calado mas traiu a calma ao fazer uma passagem de caixa desnecessária e o carro soluçou. O efeito não o impediu de embalar  para uma catilinária . Só me tinha trazido porque estava assim programado e dera a sua palavra.
 Isto era  bizarro, porque ele não me conheci a de lado nenhum ( o relacionamento por interposta pessoa não conta) e levava-me para  participar num atentado. O espírito Mano Negra não me era familiar, mas continuava a achar pateta aquele tipo de recrutamento. A curiosidade infantil é, contudo, sempre fiel. Resolvi alinhar e calei-me até chegarmos ao destino. Desta vez não era uma moradia bucólica. Carlo parou o carro no centro de Farvira, diante de um  hotel  barato. Não havia movimento nesta altura do ano  não estava ninguém na recepção.  Subimos num elevador a cheirar a cenoura cozida e  Carlo bateu à porta de um quarto no segundo andar. Um homem magro, com ar de  hippie  e velho como um hippie velho, abriu a porta e deu  um abraço a Carlo. Lá dentro, sentados na cama, estava um casal de garotos, já mais hippie chic, a partilhar um charro que empestava  o ambiente.  Mais do que surreal, era cómico.

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